Fatores conjunturais diversos, como quebra da produção e dificuldade na obtenção de crédito, dificultam o pagamento das dívidas pelos produtores rurais e muitos deles enxergam na recuperação judicial um caminho para evitar a falência. Uma pesquisa divulgada neste mês pela Serasa Experian mostra um aumento de 535% no número de produtores rurais que atuam como pessoa física que recorreram a essa medida em 2023.

Em número absoluto, os pedidos de recuperação judicial computados no ano passado somam 127 em todo o país. Em um universo onde atuam milhares de produtores rurais, ainda é um número baixo, mas especialistas veem uma tendência de alta nesse movimento. E considerando a importância do agronegócio para a economia nacional, um olhar mais aprofundado sobre os dados levantados pela Serasa Experian chamam a atenção para a crise atravessada pelo setor há alguns anos.

Desses 127 pedidos de recuperação judicial, 35 são de grandes produtores e 43 foram registrados no Mato Grosso, o estado que mais acumula processos dessa natureza. “O agro hoje representa em torno de 25% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional e puxa a economia brasileira. E o setor, nos últimos anos, vem passando por uma crise que só aumenta, como uma bola de neve”, disse o advogado mestre em direito empresarial e especialista em recuperação e reestruturação de empresas, Alan Mincache.

A conjunção de fatores que contribuíram para o acirramento da crise no agronegócio inclui a alta nos preços dos insumos – um resquício da pandemia, agravado pelas guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio -, que elevaram expressivamente o custo de produção. Somado a isso, há uma maior oferta de produtos no mundo, com o crescimento no volume de commodities como soja e milho, e as sucessivas quebras de safra provocadas pelas mudanças climáticas, especialmente no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná. Nessa conta entram ainda a mobilização de capital próprio e de terceiros para aumentar a tecnologia no campo e a área plantada e a carência de armazéns, que obriga os produtores a acelerarem a comercialização, dificultando a regulação de preços.

Mincache cita ainda a política econômica do país voltada especificamente para o agronegócio, ainda incipiente. “Os planos safra que o governo apresenta, com os recursos subsidiados para fazer com que a agricultura faça investimentos com dinheiro mais barato, são muito pequenos e, então, ocorre o fenômeno da ‘financeirização’ da produção agrícola por meio do capital privado, mais caro, aumentando o custo de produção no país. E para piorar, o Brasil ainda não implementou de verdade um seguro agrícola, não é abrangente.”

Com tantos fatores adversos, é cada vez maior o número de produtores rurais que não consegue honrar suas obrigações. Uma consequência do desnivelamento entre o que tem a pagar e a receita gerada. A conta não fecha.

Na busca pelo ajuste desse desequilíbrio financeiro é que os agricultores e pecuaristas têm recorrido com uma frequência cada vez maior à recuperação judicial, um remédio que, apesar de amargo, pode evitar uma futura falência. “A recuperação judicial significa, para o produtor rural, o congelamento momentâneo das dívidas para que ele possa se reorganizar e discutir com os credores, de forma organizada, uma proposta financeira de como se tornar adimplente novamente, sem sair do mercado e sem suprimir a vocação agrícola dele”, explicou Mincache.

Ao ingressar com um pedido de recuperação judicial, o prazo de congelamento da dívida é de 180 dias, prorrogável por mais 180, ou seja, o produtor pode protelar em quase um ano o pagamento de seus débitos. “Esse prazo é importante porque o fluxo de caixa de uma produção rural é safra e safrinha. É o tempo de se reorganizar e buscar uma solução com os credores, com base no fluxo de caixa e na capacidade de produção.”

Mincache entende que a questão da recuperação judicial no Brasil ainda é um tabu em razão da falta de esclarecimento e da lembrança ainda viva dos pedidos de concordata, que invariavelmente se convertiam em falência.

Presidente do Ibajud (Instituto Brasileiro de Solvência), Breno Miranda afirma que o sistema vem evoluindo desde 2005, quando foi publicada a primeira versão da lei de falências e recuperações judiciais. Até então, as concordatas eram reguladas por decretos.

Miranda avalia que ainda existe uso indevido de recuperações judiciais no país, mas os aprimoramentos na legislação ajudam a afunilar os casos, como a criação da constatação prévia, que entrou em vigor no final de 2020. Essa perícia é feita antes de o juiz decidir se o processo de recuperação judicial tem ou não condições de avançar.

A constatação prévia é o que vem fazendo subir o nível dos processos, segundo o sócio-fundador da EXM Partners, Angelo Guerra. “Com isso, o pedido de recuperação judicial já não tem mais o objetivo de apenas atrasar a falência. Há um filtro na largada.”

O filtro reduziu o número de deferimentos, que deixam de ser quase automáticos, mas a tendência é que aumente o número de processos encerrados com o soerguimento da companhia. Apesar do desgaste da imagem da recuperação judicial, são comuns os casos em que a empresa segue funcionando até que o processo seja encerrado.

Outra mudança recente que melhorou o andamento desses processos foi a criação das varas especializadas. Em 2019, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou uma recomendação para que os tribunais de justiça criassem câmaras ou turmas especializadas em falência, recuperação judicial e outros temas ligados ao direito empresarial. A criação dessas varas mudou o panorama de processamento dos pedidos de recuperação e de falência, tornando-os mais céleres.

Segundo o CNJ, somente oito estados brasileiros têm varas especializadas: Ceará, São Paulo, Tocantins, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo. Juntos, esses tribunais têm 20 varas dedicadas a falências e recuperações judiciais.(Com Folhapress)