O PL 1904 é um desses projetos de lei minúsculo e oportunista, de motivações duvidosas, que visa surfar sobre um assunto espinhoso, delicado, mas já definido, na teoria e na prática. Os seus autores colocam a mulher que aborta num patamar de criminalidade acima da pena aplicada ao estuprador. É disto que se trata. O resto, não tem nenhuma novidade, seja epistemológica, ética, moral ou religiosa! Trata-se, em última análise, de uma armadilha, para que pessoas como eu, padres ou pastores, fiquemos calados ou apoiemos tacitamente (sem ler) o dito projeto!

Ora, ninguém de bom senso no Brasil é a favor do aborto. Nenhuma mulher pode afirmar-se abortista! A interrupção da gravidez é crime, salvo em casos já definidos por lei. Os deputados ao legislarem sob a égide da punição, o fazem deslavadamente amparados pelo óbvio: as religiões e o tema da defesa da vida! Assim, eles avançam com essa pauta a toque de caixa, abandonando a seriedade que o tema reclama.

Essa é a extrema direita no mundo e no Brasil. Não escondem o jogo e lançam mão de valores e verdades universalmente aceitas, para construir a sua alavanca eleitoreira, em ano de eleições. Usam a consciência moral da maioria absoluta dos brasileiros que se afirma contra o aborto, e derretem a compaixão e a misericórdia para com meninas e adolescentes, que são diariamente vítimas de violência sexual. À mulher caída na poeira e acusada de pecado, restam as pedras empunhadas pela dura lex. O tal de Jesus de Nazaré, esse é um detalhe!

A defesa da vida não é um jargão. Ela é inerente a todo o ser humano, que impulsionado por um sentimento intrínseco ao seu próprio ser, busca viver e deixar viver. As guerras, todo tipo de fratricídio e o próprio suicídio são exceções dolorosas. Manifestações de um desespero ou de um descontrole, cujas causas são as mais diversas, mas que confirmam a tese inicial da opção primordial pela vida. O desejo de uma terra sem males e sem morte é tão ancestral, que se confunde com a própria existência humana.

Posto isto, o tema aborto deveria ser abordado com todos os atentados contra a vida humana, do “início ao final”! Por que não discutir justiça social, trabalho infantil e escravo ou desrespeito aos idosos tratados como descarte, como já denunciou o papa Francisco? A cultura abortista não existe. Ela não passa de um mito inventado para pichar o muro branco de tantas situações constrangedoras e dolorosas, enfrentadas pelas mulheres, a maioria meninas, vítimas de abusos sexuais, quase sempre dentro da própria casa!

Cada interrupção de gravidez é um mar de lágrimas, que de tão salgadas se tornam uma tortura na ferida aberta. Essa é a realidade. É isto que devemos discutir e não podemos fugir. Colocar a questão no dilema sofista de “ser ou não ser a favor” é torná-la perniciosa! É colocá-la no rol deste caldo cultural divisionista, de autêntica polarização em que caiu o Brasil nos últimos anos. E a extrema direita tornou-se perita nesta arte! Não ao aborto significa sim à vida. Uma sociedade inteligente não opta pela criminalização, mas pelo cuidado.

A maioria dos países sérios do mundo já ultrapassou esta etapa e avançou para políticas públicas, que têm evitado a gravidez indesejada e protegido as adolescentes mães. Governos não são para punir ninguém, mas para defender a todos. A defesa da vida, prerrogativa primordial e constitucional do Estado, se dá exatamente através das políticas voltadas para a educação e saúde. Punir mães adolescentes ou condenar pura e simplesmente não é ético, nem moral e muitos menos cristão!

As Igrejas não têm que correr atrás de deputados para endossar pseudodefesas da vida humana! Cair no colo do debate politiqueiro, escorregando nas “cascas de banana”, é ausência de discernimento! O tema aborto move milhões de dólares pelo mundo afora e os motivos nem sempre são os mais nobres! Não é de desprezar que a maioria dos brasileiros seja contra o aborto e simultaneamente contra esse projeto!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina