Seja a 200 ou a 1.000 km de distância, a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, desde 24 de fevereiro deste ano, causa impacto direto e indireto na vida de milhões de pessoas que moram nos países que rodeiam o conflito. Altos índices de inflação, aumento do preço de combustíveis e desabastecimento de itens básicos nos supermercados impressionam as nações europeias, que vivem sob a expectativa de uma nova guerra se espalhar pelo continente.

A FOLHA ouviu brasileiros que vivem na Polônia, Romênia, Áustria e Alemanha sobre os impactos que a invasão da Ucrânia pelas tropas russas causaram em suas rotinas. Eles narram desde ajustes orçamentários, mudanças no trabalho, presença de forças militares nas ruas e até mesmo a recepção de refugiados nas próprias casas.

Segundo o último levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU), 2 milhões de refugiados ucranianos foram acolhidos até agora na Polônia, um número muito expressivo para um país que até então não recebia fluxos de migrantes de outras guerras. Desde a primeira madrugada do conflito entre Ucrânia e Rússia, em fevereiro deste ano, a fronteira polonesa já recebe centenas de pessoas diariamente, que contam com o apoio do governo, sociedade civil e da população em geral para fugir das zonas de perigo.

Liza Valença Ramos e Błonia, cadelinha de uma família ucraniana que se hospedou na sua casa, na Cracóvia
Liza Valença Ramos e Błonia, cadelinha de uma família ucraniana que se hospedou na sua casa, na Cracóvia | Foto: Arquivo pessoal

A Cracóvia, cidade ao leste da Polônia, há pouco mais de 200 km da fronteira com a Ucrânia, é uma das principais rotas de fuga do conflito que assola a Europa. É lá que a brasiliense Liza Valença Ramos, 35, vive com o marido curitibano há três anos. Desde o último dia 24 de fevereiro, quando as tropas russas invadiram o país vizinho, a consultora em sustentabilidade viu a demanda de agregar mais uma competência a seus afazeres diários: a de acolhimento aos refugiados. “Recebo famílias refugiadas na minha casa desde o primeiro dia do conflito. Através de um grupo no whatsapp de brasileiras que vivem na Polônia, criamos uma rede de apoio a essas pessoas”, conta Liza, que oferece a sala do apartamento de dois cômodos para estadias de curto prazo.

A brasileira explica que a proporção do conflito pegou a população polonesa de surpresa, que hoje tenta se organizar para receber os vizinhos. “Sabemos que a Rússia invadir a Ucrânia não é algo novo, já existe a guerra na Crimeia há oito anos. Mas, nenhum polonês ou mesmo ucraniano que eu conheço acreditava que seria uma guerra em escala nacional”, acrescenta. E esse cenário afetou diretamente a vida de quem vive na Polônia. “Não tem um dia que a gente consiga não pensar na guerra. Você encontra muitas bandeiras, além de cartazes e outdoors escritos na língua ucraniana. A gente está o tempo todo recebendo essas informações de que tem pessoas que precisam de nós”, relata.

Outro temor apontado pela brasileira é o aumento da presença de militares no país. A Polônia, que é sede da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar ocidental), já recebeu cerca de 1.700 soldados americanos, segundo dados divulgados pelo Pentágono. Na Cracóvia, onde há um aeroporto militar, é possível observar a movimentação de aeronaves e de tropas espalhadas pelas ruas. Liza explica que, apesar da apreensão, há uma sensação de segurança que essa presença desperta. “É ao mesmo tempo medo e calma. Porque, se a Rússia invadir a Polônia teremos uma guerra em larga escala. E eu não estou falando que só a Polônia vai ser afetada, acho que o mundo inteiro vai, inclusive o Brasil. É um cenário inimaginável. Quando a gente vê um soldado, pensa: ‘Ufa e que medo. Queria que ele não estivesse aqui’.”

MOVIMENTO COMUNITÁRIO

A catarinense Everly Giller ministra aulas de português em uma escola na Varsóvia (Polônia) e viu sua rotina mudar
A catarinense Everly Giller ministra aulas de português em uma escola na Varsóvia (Polônia) e viu sua rotina mudar | Foto: Arquivo pessoal

Para Everly Giller, 61, o país de seus avós paternos está dando um exemplo de solidariedade para todo o mundo. Desde julho de 2018, a artista plástica e professora de idiomas vive em Sieraków, uma vila que fica a 15 km do centro de Varsóvia, capital polonesa. O interesse pela cultura e tradições dos antepassados foi o principal motivo para a mudança, aliado pela sensação de segurança que o país parecia oferecer. Mas, esse cenário mudou de fevereiro para cá, quando as condições do leste europeu ficaram cada vez mais imprevisíveis. Apesar da tensão, Everly relata que os poloneses estão adaptando suas rotinas em apoio aos vizinhos de fronteira. “Na escola pública onde eu ministro aulas de português já estão recebendo alunos vindos da Ucrânia. Existem escolas que já receberam mais de 150 alunos e tiveram que abrir mais turmas e contratar professores, inclusive com domínio da língua ucraniana”, conta a catarinense. Varsóvia já acolheu mais de 200 mil refugiados, a maioria mulheres e crianças. Escolas, centros esportivos, hotéis e uma série de serviços públicos foram adaptados para recebê-los.

A disputa pela narrativa em torno do conflito também chama a atenção da artista. Ela afirma que há um esforço da opinião pública para evitar a desinformação em torno da guerra. Segundo Everly, “a maioria da mídia polonesa tenta ser objetiva e enfrentar a agressiva propaganda russa a qual tem objetivo de provocar medo e caos”. Por mais que as tropas enviadas pela OTAN e as restrições econômicas ao governo de Vladimir Putin criem uma sensação de segurança, a brasileira reconhece que a expansão do conflito é possível, e que já vê movimentações de pessoas saindo do país. “Tenho uma amiga que é brasileira casada com polonês. Ela resolveu viajar para o Brasil com o bebê deles até a situação melhorar. Também conheço outro casal de brasileiros que apesar de preferir morar aqui, já está com as malas prontas, fizeram até o passaporte dos gatos e estão preparados para voltar ao Brasil caso o cenário piore”, relata.

FAMÍLIA SE PREOCUPA

De Varsóvia, o estudante João Guilherme Lavado, de 28 anos, tenta conter os ânimos da avó Ana, polonesa que mora em Curitiba desde pequena. Através dos noticiários brasileiros, ela vê o seu país natal servir de principal ponto de refúgio para a população ucraniana após a invasão russa e se preocupa com a proximidade do neto ao conflito. “Ainda temos paz, graças a uma organização social, política e econômica que se estabeleceu aqui. Mas, para a minha família, que vê de longe, fica uma apreensão muito grande de que eu esteja no país ao lado da guerra”, explica João Guilherme. Ele, que já teve o curso do mestrado prejudicado pela covid-19, agora vê mais uma onda de incertezas na permanência no local. “Apesar de entender, minha família fica muito apreensiva e pergunta se eu quero voltar para casa”, afirma o curitibano.

O curitibano João Guilherme Lavado se mudou para a Polônia para cursar o mestrado e sua avó polonesa teme por sua segurança
O curitibano João Guilherme Lavado se mudou para a Polônia para cursar o mestrado e sua avó polonesa teme por sua segurança | Foto: Arquivo pessoal

Do final de fevereiro para cá, a população de Varsóvia cresceu em 17% com o conflito entre russos e ucranianos, impactando na estrutura e nos serviços da cidade. Lavado conta que notou os transportes públicos mais cheios, acampamentos na estação ferroviária e muitos voluntários poloneses e estrangeiros. “O polonês tem ajudado muito, com tudo o que é possível. Ajuda financeira, dedicação do tempo e muita paciência para a comunicação”, revela. O curitibano criou conexões com a Polônia antes mesmo de sair do Brasil através do trabalho voluntário em uma igreja, que atualmente atua com o acolhimento de ucranianos nas fronteiras do país.

ROTINA COM APREENSÃO

O músico e tradutor Raul Passos, 38, deveria estar em Moscou, capital russa, nesta semana para um evento da organização filosófica-cultural da qual é diretor, mas a permanência do conflito entre o Kremlin e o governo ucraniano não permitiu. O curitibano mora há cinco anos em Bucareste, capital da Romênia, país que faz fronteira com a região oeste da Ucrânia. Apesar de ser vizinho próximo, os romenos recebem um fluxo de refugiados bem menor que o da Polônia, que acolhe 60% dessa movimentação. Mas, segundo Passos, já é possível observar a presença de ucranianos em diversas cidades romenas, inclusive na capital. “Posso dizer que o conflito não causou tanta alteração no cotidiano da cidade, mas é possível ver e ouvir mais ucranianos pelas ruas”, relata o paranaense, que também observou a presença desses estrangeiros no acesso à serviços públicos, como transportes e hospitais.

Raul Passos: o músico e tradutor de Curitiba se mudou para a Romênia há cinco anos na fronteira da Ucrânia e diz que lá a solidariedade se impõe
Raul Passos: o músico e tradutor de Curitiba se mudou para a Romênia há cinco anos na fronteira da Ucrânia e diz que lá a solidariedade se impõe | Foto: Arquivo pessoal

Para o músico, o que mais reverbera entre os romenos é uma sensação de responsabilidade e solidariedade no que diz respeito à invasão da Ucrânia. “Aqui, entende-se que é preciso receber pessoas de um país que sofre uma agressão. O governo já afirmou que tem capacidade de acolher meio milhão de pessoas em situação de refúgio. Mas, também é possível notar iniciativas de ONGs e outras instituições. Por exemplo, fizemos uma doação de roupas para ucranianos acolhidos por uma fundação universitária aqui de Bucarest”, conta.

Entre Romênia e Ucrânia fica um pequeno país que também é alvo de disputas territoriais entre os russos, a Moldávia. Após a dissolução da União Soviética, em 1991, a região tem sido alvo de levantes separatistas pró-Rússia, e a recente invasão das tropas de Vladimir Putin à Ucrânia deu contornos mais realistas a esse conflito. Diferente dos vizinhos ao leste, a Romênia é membro da OTAN, algo que, para Raul Passos, oferece mais segurança à população. “ Entre os romenos existe uma apreensão, mas não um medo cristalizado. Há uma confiança de que a OTAN e a União Europeia são barreiras que protegem contra uma possível agressão vindo de fora”, afirma o paranaense.

MUDANÇAS IMPROVISADAS

Em Viena, capital da Áustria, a curitibana Anna Elisa Jardanovsky, 26, acompanha desde fevereiro a apreensão do namorado ucraniano, cuja família migrou de Dnipro, cidade na região central da Ucrânia, para a Alemanha e a Áustria. “Tínhamos planos de fazer uma viagem à cidade natal dele neste ano e é claro que não vai mais acontecer”, conta a jornalista. Cerca de 20 membros da família do namorado já se deslocaram do país, a maioria crianças e mulheres. “Infelizmente, não são todos que conseguiram sair. Ele tem um tio que é paraplégico que não tem condições de pegar um trem lotado e ficar horas esperando em filas”, relata a brasileira.

A jornalista paranaense Anna Elisa Jardanovsky mora na Áustria há quatro anos, choca-se com as cenas dos refugiados chegando
A jornalista paranaense Anna Elisa Jardanovsky mora na Áustria há quatro anos, choca-se com as cenas dos refugiados chegando | Foto: Arquivo pessoal

Na capital austríaca, a paranaense conta que é possível notar um grande movimento de refugiados nas ruas e vê com admiração o esforço coletivo para criar uma recepção digna aos europeus do leste. “Vejo muitas coletas de doações, sejam elas roupas de inverno, remédios ou alimentos. Já vi pessoas que alugam espaços da casa de graça para os refugiados e até empresas que fazem realocações para profissionais ucranianos ingressarem no mercado de trabalho. É bem bonito ver esse acolhimento”, afirma. No entanto, ainda é difícil não se chocar com cenas de famílias deslocadas sem qualquer recurso. “Perto de onde eu moro tem um hotel e já vi algumas famílias de mulheres e crianças pequenas chegando apenas com sacolas. Não com malas, como se estivessem de mudança, mas com sacos que parecem ser de doações ou de coisas retiradas às pressas”, observa Anna Elisa.

A paranaense, que trabalha em uma agência das Nações Unidas, revela que a opinião pública é uníssona em relação ao conflito: “Não conheço ninguém aqui que tenha acesso a meios de comunicação mais imparciais que não esteja indignado com a guerra. Meus colegas russos estão envergonhados e tentam fazer o possível para ajudar os ucranianos de alguma forma”. Ela conta que a Áustria, que era um dos países com regras mais enrijecidas em relação à pandemia do Covid-19, viu toda a imprensa mudar a cobertura diária em relação à guerra. No sábado (19), a cidade de Viena organizou um festival chamado ‘We Stand with Ukraine’, reunindo mais de 40 mil pessoas no maior estádio da cidade. Participaram do evento vários nomes importantes da música e até mesmo o presidente da Áustria. “Isso gerou até uma polêmica, porque há pouco tempo, não era possível reunir tantas pessoas sem um distanciamento social efetivo. Mas, foi uma forma de demonstração de apoio das lideranças e de engajamento da população”, avalia Anna Elisa.

MEDO CHEGA À PORTA DOS CONSULTÓRIOS

Em sua formação em psicologia clínica no Brasil, Gabriel Lincoln do Nascimento, 27, não esperava ter que realizar intervenções relacionadas ao medo de ataques nucleares. Mas, em sua atuação na Alemanha, os temas relacionados ao conflito na Ucrânia se tornaram pautas recorrentes nas sessões de fevereiro para cá. “De forma geral, percebo que o medo da guerra - ou medo das consequências da guerra - se tornou bastante presente. Acho difícil nomear as mudanças que aconteceram, porque parte delas não é concreta, tem mais a ver com um sentimento que parece pairar”, relata o curitibano que vive em Bad Hersfeld, na região central da Alemanha.

Gabriel Lincoln do Nascimento se formou em psicologia em Curitiba e atua a Alemanha, onde vê o medo da guerra ressurgir com força
Gabriel Lincoln do Nascimento se formou em psicologia em Curitiba e atua a Alemanha, onde vê o medo da guerra ressurgir com força | Foto: Arquivo pessoal

Além das mudanças no trabalho, Nascimento viu suas despesas impactadas pelo aumento nos preços dos combustíveis, que já vinham acontecendo desde o início da pandemia do Coronavírus. “Em 23 de fevereiro, um dia antes da invasão à Ucrânia, o litro do diesel nos postos era €1,80 e na semana passada, isto é, 20 dias depois, chegou a €2,40”, relata. Nos mercados, ele também observou o desabastecimento de alguns itens básicos de alimentação, isso porque os alemães tendem a fazer uma prática chamada Hamsterkäufe, que é comprar em grandes quantidades para estocar quando alguma crise acontece. “Outra mudança que se pode perceber é que os produtos tipicamente russos não estão mais disponíveis nos mercados. Eles eram muito comuns aqui, porque ainda há muitas pessoas de origem soviética. Acredito que essa retirada tenha acontecido tanto pelas dificuldades de importação, quanto por razões políticas”, comenta.

Como Bard Hefsveld é uma cidade pequena, não há um fluxo de refugiados expressivo no local. Mas, quando esteve em Berlim, na última semana, Nascimento notou um grande número de ucranianos sendo recepcionados na estação central da cidade. “Consigo enxergar um grande esforço da ação humanitária para acolher pessoas que necessitam refúgio. Mas, há uma controvérsia em torno do aumento da militarização do país. Segundo o psicólogo, “a posição do governo russo como ‘inimigo’ revive sentimentos conhecidos pelos alemães que viveram a guerra fria”. Ele ainda acrescenta: “me parece que as pessoas que já tiveram essa experiência lidam melhor com a instabilidade do que as pessoas mais jovens, que cresceram em um mundo de estabilidade e prosperidade social e política”, conclui.

Mural em Varsóvia, na Polônia, em oposição à invasão à Ucrânia pelas tropas russas
Mural em Varsóvia, na Polônia, em oposição à invasão à Ucrânia pelas tropas russas | Foto: Everly Giller/ Arquivo pessoal

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