Com o mote “criança não é mãe”, londrinenses fizeram um ato público neste sábado (15) contra o PL (Projeto de Lei) 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples.

As manifestações contra a proposta, que teve a urgência de tramitação aprovada nesta semana na Câmara dos Deputados, estão sendo realizadas em várias cidades brasileiras.

Em Londrina, o protesto contra o PL 1904/2024 aconteceu no Calçadão
Em Londrina, o protesto contra o PL 1904/2024 aconteceu no Calçadão | Foto: Douglas Kuspiosz - Reportagem Local

Em Londrina, a mobilização começou por volta das 10h, no Calçadão da avenida Paraná. Com gritos como “criança não é mãe” e “estuprador não é pai”, o ato reuniu movimentos sociais diversos. O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), foi criticado pela forma como o requerimento de urgência foi aprovado, em uma votação relâmpago.

A professora Meire Moreno, 41, integrante da Frente Feminista de Londrina, afirma que o projeto de lei assinado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares é um retrocesso.

Protesto no Calçadão de Londrina contra o PL 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples.
Protesto no Calçadão de Londrina contra o PL 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples. | Foto: Douglas Kuspiosz - Reportagem Local

“A legislação brasileira que aponta as permissões legais para a situação de abortamento é de 1940. Nós estamos em 2024 e estamos retrocedendo em um direito que é tão fundamental. O direito de termos os nossos corpos preservados, as nossas vidas preservadas, e de interromper uma gravidez fruto de um estupro”, aponta Moreno, que diz que o PL “impactará todas as mulheres e pessoas que podem engravidar”.

MOVIMENTO PLURAL

“Não é à toa que o movimento é tão plural, que nós temos aqui conosco mulheres jovens, casadas, com filhos, evangélicas, religiosas de outros setores, de outras religiosidades, porque esse projeto afeta todas nós, mas principalmente as crianças e as pessoas com deficiência, porque elas têm mais dificuldade em denunciar a violência sexual e normalmente identificam a gravidez já em um estágio mais avançado”, acrescenta a professora.

Protesto no Calçadão de Londrina contra o PL 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples.
Protesto no Calçadão de Londrina contra o PL 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples. | Foto: Douglas Kuspiosz - Reportagem Local

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2022, o Brasil registrou 74.930 casos de estupro e estupro de vulnerável, o maior número da história - 88,7% das vítimas são do sexo feminino. Quando se analisa o perfil das vítimas, o levantamento mostra que 61,4% tinham no máximo 13 anos.

“Considerando a autoria indicada no boletim de ocorrência, assim como em anos anteriores, na maioria absoluta dos casos os abusadores são conhecidos das vítimas (82,7%), e apenas 17,3% dos registros tinham desconhecidos como autores da violência sexual”, diz o anuário. “Em suma, quando falamos dos estupros e estupros de vulnerável que ocorreram em 2022, estamos falando de um tipo de violência essencialmente intrafamiliar, que acontece em casa, durante o dia, e que tem como principais vítimas pessoas vulneráveis.”

Protesto no Calçadão de Londrina contra o PL 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples
Protesto no Calçadão de Londrina contra o PL 1904/2024, que equipara aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples | Foto: Douglas Kuspiosz - Reportagem Local

SAÚDE PÚBLICA

A assistente social Sara Alexius, 45, colaboradora do movimento Mulheres EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), afirma que é preciso parar “de jogar cortina de fumaça em cima de uma questão de aborto que envolve saúde pública e trazer o foco para a violência”.

“A maioria da sociedade também não é a favor da violência dentro da família. Tanto que os discursos são ‘proteja as nossas famílias’ e ‘proteja as nossas crianças’. Então, que vocês se juntem a nós e que vocês consigam entender o absurdo que é”, afirma Alexius, que ressalta que o PL 1904 criminaliza a vítima, dando uma pena maior que a do estuprador. Hoje, a pena por homicídio simples pode chegar a 20 anos; já para estupro, dez anos.

Imagem ilustrativa da imagem Londrinenses fazem ato no Calçadão contra PL sobre aborto
| Foto: Douglas Kuspiosz - Reportagem Local

“É isso que a gente quer chamar a atenção aqui. Que o foco deve ser a violência e o estupro, e não a criança. E como mulheres de fé, isso também é muito importante. Nós acreditamos num Estado laico porque o Estado é para todos. Nem Jesus obrigou ninguém a segui-lo. É nisso que a gente acredita”, acrescenta.

‘CRIAR MAIS OBSTÁCULOS’

A socióloga Elaine Galvão, 58, que integra a Rede Feminista de Saúde, entende que o PL proposto é um retrocesso porque, hoje, a legislação brasileira permite aborto nos casos em que há risco de vida para a mãe, fetos anencéfalos e gravidez resultante de estupro. Fora desses casos, já existe uma legislação punitiva.

“Eles estão querendo criar mais obstáculos. Com esse projeto em discussão na Câmara Federal, nós teremos mais obstáculos para que as mulheres acessem o direito, já conquistado desde 1940, de realizar a interrupção da gravidez nesses casos previstos”, critica.

Imagem ilustrativa da imagem Londrinenses fazem ato no Calçadão contra PL sobre aborto
| Foto: Douglas Kuspiosz - Reportagem Local

Galvão explica que um estudo da Rede Feminista de Saúde apontou que, segundo dados de 2010 a 2019, anualmente 25 mil meninas entre dez e 14 anos engravidam e têm filhos. Ela pontua que pesquisam indicam que aproximadamente um terço dos abortos legais realizados no Brasil ocorrem após 22 semanas de gestão.

“Existem inúmeros obstáculos, inúmeras dificuldades para as mulheres acessarem esse direito, para chegarem até um serviço de aborto legal e, principalmente, para as meninas. Nós temos esse número absurdo de meninas que são estupradas”, acrescenta.

A socióloga também entende que, além de o fato dessas meninas não conseguirem identificar os sinais de uma gravidez, há omissão por parte do Estado na divulgação dos serviços que realizam aborto legal. Quando chegam para o atendimento, a gravidez já está avançada.

NA ITÁLIA

Em uma entrevista concedida neste sábado em Puglia, na Itália, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que o PL 1904 é "uma insanidade". "Quando alguém apresenta uma proposta em que a vítima de um estupro tem de ser tratada com mais rigor que o estuprador, não é sério", disse Lula.