Certamente, o leitor da Folha possui alguma relação, mesmo que mínima, com a literatura, com locais onde se respira literatura, ou com pessoas que lidam com essa arte. É de se supor, então, que o leitor do jornal é também um leitor de outras linhas e que muitos têm profunda intimidade com ambientes como bibliotecas, livrarias e sebos. Logo, em tempos tão proibitivos, é vital tratarmos do assunto que nos une de um modo ou de outro.

Livros têm grande peso na minha vida pessoal, inclusive na minha vida afetiva recente. Foi através deles que começamos, eu e minha esposa, a cultivar e solidificar nossa relação. Posso dizer que, nesse caso, o amor foi construído com a ajuda da literatura, cada livro um tijolinho a mais nas paredes da vida a dois. Mas a história que se passa nestas linhas vem de outra época.

Início dos anos 90. Meu eu adolescente estava em viagem com a família pelo Litoral do estado. Pais, tios, primos, todo um universo familiar enfiado numa casa de madeira cujo valor exorbitante do aluguel na temporada deixaria o dos imóveis de luxo de Londrina no chinelo.

Certo dia fomos visitar o centro histórico de Paranaguá. Teimosamente usando uma camiseta preta do Sepultura naquele verão escaldante, eu deambulava distraído pelas ruas, quase alheio à conversa dos mais velhos sobre como eram as coisas em outra época da vida, até que meu tio, virando uma esquina de edifícios de arquitetura antiga, entrou em um estabelecimento. Meia dúzia de frequentadores, cheiro de livros velhos, jornais, discos, impossível confundir: era um sebo. Parei em frente à porta.

“Vamos, o Asimov tá aí dentro”, meu tio comentou. Ele sabia que eu gostava desse escritor. Continuei, claro. Na entrada, fui tomado pela sensação de aconchego que esses lugares exalam, diferentemente das livrarias de shoppings, e imediatamente me meti entre as estantes a fuçar atrás de leituras que me agradassem. Essa foi a primeira de muitas viagens da minha vida que voltei com livros na mala.

Eu desfilava maravilhado, até tropeçar numa pequena seção de ficção científica, gênero que vou levar no coração até o dia em que ele parar. Lembro que saí de lá feliz por ter adquirido alguns exemplares que eu procurava na época e dois deles eram publicações do renomado escritor russo-americano: uma antologia de contos e um romance espacial. Fiquei admirado ao encontrar Isaac Asimov, criador da Fundação e das sagas sobre robôs, dando o ar da graça em meio a outros autores, na pequena loja entre as ruas estreitas de nossa cidade portuária.

A literatura é um campo vasto e cheio de possibilidades, mas muitas vezes alvo de censura, como estamos vendo nos dias atuais. E isso não é exclusividade de romances com um vocabulário “explícito” ou “impróprio”. Devemos lembrar de situações mais simples em épocas bem recentes, como o caso de uma história em quadrinhos que sofreu uma tentativa de censura em 2019, pelo então prefeito do RJ, apenas porque a capa exibia um beijo entre pessoas do mesmo sexo, como se isso fosse um crime.

Temos hoje a polêmica envolvendo o livro O Avesso da Pele. Na Itália, em 2022, o próprio Dostoiévski sofreu censura em uma universidade. O estado de Rondônia tentou censurar, em 2020, nada menos que 19 obras de Rubem Fonseca, além de Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Ferreira Gullar, Euclides da Cunha, Rubem Alves e Machado de Assis, entre vários outros.

Tudo isso correndo paralelamente à circulação indistinta de obras elitistas, racistas ou sexistas, sem qualquer preocupação com debate ou conscientização acerca delas, gerando impacto negativo na cadeia social de leitores.

Há, por exemplo, quem leia o Mein Kampf como se fosse algo digno de ser digerido e levado em consideração, aceitando muitas das ideias sobre superioridade racial escritas pelo autor. Isso enquanto varremos para baixo do tapete as questões sociais verdadeiramente importantes que delineiam a História do Brasil desde épocas mais antigas que os “bons tempos de antigamente”.

Bem. Quero falar um pouco sobre os tais “bons tempos de antigamente”. Das aquisições feitas naquele sebo mágico de Paranaguá, eu me lembro bem da antologia de contos que começa com um editorial do Asimov sobre esses “velhos bons tempos”: um mundo idílico, já inalcançável, como se fosse uma época dourada, saudosa e com uma melancolia intensa com relação ao presente. Curiosamente, era o assunto do pessoal antes de entrar na livraria.

Trazendo a reflexão do conceito para o presente, podemos pensar nas vias políticas e sociais de censura que querem ressuscitar os “bons tempos” da moral e do decoro. Mas literatura, música, quadrinhos, arte, teatro, são o motor que faz girar a roda da consciência, da inventividade, da criatividade, da liberdade. Cercear o acesso de alunos ou de quaisquer grupos à cultura é bárbaro e antiquado, como os “bons tempos de outrora” também o são.

Precisamos trazer o debate ao meio social, em vez de engavetá-lo num canto escondido do convívio e do crescimento humano, pois assim ficamos para trás em relação a países que têm mais liberdade analítica quanto às suas próprias produções artísticas de época ou contemporâneas. Devemos falar do racismo e do machismo nos cânones, devemos abordar sexualidade, devemos conhecer costumes diferentes dos nossos, em vez de ficarmos restritos a uma bolha de conteúdo conservador sem propósito algum além do de forçar sua ideologia aos demais.

É tão melhor abraçar o entendimento, em vez do obscurantismo. É tão gratificante para a alma entrar numa livraria, folhear os livros e sentir a energia que palavras como conhecimento e compreensão oferecem.

Asimov estava certo em seu editorial na antologia. Os “bons tempos” do passado não seriam bons para quase ninguém vivo hoje, pois faríamos parte dos excluídos, sem poder aquisitivo, sem estudo, sem opinião, sem direitos, sem acesso à cultura e, a depender da época, sem liberdade. Os “bons tempos” do passado seriam bons apenas para a exclusiva aristocracia vigente, ditadora, ontem e hoje, do que é certo ou errado, do que é bom ou ruim, de leis, de ganhos, da arte, de credos, da informação e da cultura.

De minha parte, prefiro o agora, assim como o velho Isaac que encontrei em Paranaguá.

L.R. Silva, escritor e leitor da Folha