O ano é 1870. O capitão Jeffrey Kyle Kidd (Tom Hanks),nômade entre uma cidade e outra, exerce o curioso ofício de leitor de noticias de jornais para uma população sofrida que precisa de informação e entretenimento. Ele encontra, perdida e solitária, a garota, Johanna Leonberger (a revelação alemã Helena Zengel), órfã filha de pioneiros europeus que foi levada e criada pelos índios da nação Kiowa que mataram seus pais. Ele obtém ainda informações sobre tios dela que estariam mais ao sul do Texas, e então decide levá-la, através de estradas poeirentas e perigosas, numa viagem que se transforma em retrato verdadeiro e grave sobre as marcas profundas deixadas pela Guerra Civil na sociedade dos EUA.

Adaptado do romance homônimo de Paulette Jilles, “Relatos do Mundo” (News of the World, 2020), lançamento da Netflix, é o mais recente filme do diretor britânico Paul Greengrass, lembrado pelo outro capitão, o Phillips, de 2013, tambem vivido por Tom Hanks, e por sua trilogia Bourne (os três primeiros, 2002-2007). A obra se destaca pela construção meticulosa dos personagens, cuja trajetória se revela ao longo de toda a história. Melancólico e solitário, Kidd é o veterano de um exército desintegrado que viaja pelo derrotado sul dos Estados Unidos, lendo as notícias mais relevantes ou curiosas para um público em sua maioria analfabeto. Ele é um tipo de certa cultura que carrega nas costas seu pesado passado militar na milícia confederada.

A comunicação verbal entre Kidd e Johanna, a órfã que ele encontra pelo caminho, é precária
A comunicação verbal entre Kidd e Johanna, a órfã que ele encontra pelo caminho, é precária | Foto: Netflix/ Divulgação
Tom Hanks: no papel de um veterano de guerra, ele leva uma órfã para reencontrar parentes e atua como um leitor nômade que leva notícias relevantes para um público analfabeto
Tom Hanks: no papel de um veterano de guerra, ele leva uma órfã para reencontrar parentes e atua como um leitor nômade que leva notícias relevantes para um público analfabeto | Foto: Netflix/ Divulgação

A derrota e os quatro anos de guerra corroeram seu espirito e sua vida pessoal, mas ele se reinventou como contador de histórias, tentando se adaptar a um novo mundo e buscando sempre que possível a conciliação ao invés do confronto. Ao longo do caminho ele encontrará ex-soldados que querem prostituir a garota, uma cidade dominada por empresário megalomaníaco que mantém idéias de escravidão do pré-guerra e outras complicações que tornam a viagem uma grande aventura. A situação da confusa Johanna também não ajuda (a comunicação verbal entre os dois é precária), enquanto Kidd precisa ainda manter seu papel de leitor de notícias, mantendo dignidade e responsabilidade cívica como informador das comunidades por onde a dupla passa.

No entanto, ele percebeu que o meio é a mensagem, e seleciona o material que o ajudará no processo de cura após a devastação da Guerra Civil. A ênfase na integridade jornalistica e seu papel na unificação de uma nação dividida dificilmente poderia oferecer paralelo mais claro para os desafios que a nova presidência de Biden deve enfrentar. Neste momento marcado por fake news, supostas e/ou conspirações e uma descrença significativa em todas as instituições sociais por grandes setores da população mundial, “Relatos do Mundo” destaca para o leitor/espectador a importância da busca da verdade para o leitor, a relevância de se manter informado por canais verdadeiros e o valor das histórias como parte do processo de formação do imaginário e do possível. O filme também inclui referências às epidemias de meningite e cólera típicas daquela época, surtos há muito controlados no Ocidente, e obviamente evoca esta pandemia de coronavírus, evento biopolítico inesperado para alguns, mas há muito previsto por outros.

O filme é uma narrativa típica de autodescoberta e de terapia baseadas em um exercício de memória, propondo que, para esquecer, é preciso primeiro lembrar o trauma para então assimilá-lo e iniciar o processo de recuperação. Kidd tenta esclarecer a menina sobre o novo mundo em que ela terá que viver, mas no final das contas é a jovem que poderá ensinar a ele uma lição de vida. Enquanto Johanna, a jovem criada pelos Kiowa, é um pouco confusa com sua situação precária, Kidd é um homem que, na revisão de sua existencia, ainda guarda certa dignidade e responsabilidade cívica como apresentador das news, o único oficio que foi capaz de assumir após a destruição de sua impressora. As notícias que ele narra são um misto de informações gerais sobre o mundo, fatos pertencentes à comunidade e histórias surpreendentes e evocativas que atraem um público aflito por novidades.

Com “News of the World”, Paul Greengrass dá interessante guinada na carreira, nas antípodas de sua maratona Bourne. É western de poucas palavras, algumas vezes desolado, algumas vezes cruel, bem resolvido nos gestos de uma dupla de intérpretes que não esconde a excelente quimica. Mas o melhor mesmo que a direção obtém são os paralelos entre os EUA que o filme retrata e o país dos dias de hoje: um lugar violento fraturado pelo ódio e o racismo, onde parte da população não reconhece seu legítimo presidente e lideranças fascistas acumulam apoiadores espalhando mentiras. Neste sentido, nada sai do compasso neste trabalho progressista que alerta para as terríveis consequências de se manipular as notícias em tempos de turbulência política e social.