O projeto de Hitler: “Tornar a Alemanha grande novamente”. A definição dos nazistas às críticas da mídia: “fake news”. O retiro de Hitler em Berchtesgaden: é como uma espécie de Palm Beach para Hitler, por assim dizer, só que nas montanhas da Bavária.

O nome de Donald Trump não é mencionado em nenhum dos seis episódios de “Hitler and the Nazis: Evil on Trial”, a nova série histórico-documental da Netflix. Mas ele está presente, logo abaixo da superfície e, ocasionalmente, como nos exemplos acima, o quadro de acadêmicos, historiadores e biógrafos que assessoraram a produção mal consegue evitar entregar o jogo.

A série foi dirigida pelo veterano documentarista Joe Berlinger (“Paradise Lost”, “Metallica: Some Kind of Monster”), que tem contrato de produção com o strreaming e forneceu programas populares sobre crimes reais, como “Jeffrey Epstein: Filthy Rich”, e a série “Conversas com um Assassino”. No material promocional, Berlinger explica sua decisão de passar do crime verdadeiro para a guerra total e o genocídio: “Este é o momento certo para recontar esta história para uma geração mais jovem como um conto de advertência”, diz ele, acrescentando: “Nos EUA, estamos no meio do nosso próprio acerto de contas com a democracia, com o autoritarismo da extrema direita batendo à porta e um aumento do antissemitismo”.

Em outras palavras: não se pode realizar um documentário sobre a Alemanha nas décadas de 1930 e 1940 sem ter em mente os Estados Unidos das décadas de 2010 e 20.

O resultado foi que Berlinger fez uma versão de luxo da história de Hitler, do Terceiro Reich e do Holocausto, que durante anos foi um elemento básico da televisão a cabo americana. A informação não é nova, ninguém ignora, mas os recursos à disposição de realizador se refletem na abundância de material que ele dispõe para o espectador ao longo de pouco mais de seis horas: filmes de arquivo, a maior parte meticulosamente retrabalhado cromaticamente para a série, idem o áudio e diversas recriações encenadas com amplo elenco de atores, além da copiosa lista de entrevistados.

VELHA HISTÓRIA, NOVA NARRATIVA

Uma nova narrativa de uma velha história requer obviamente uma reviravolta, é claro, e o roteiro aqui, na falta de uma, tem várias. O jornalista americano William L. Shirer atua como narrador não oficial da série, apesar de ter morrido em 1993 – um trabalho de IA recriou sua voz lendo passagens de seus muitos livros sobre aquele período e, ocasionalmente, sua voz real é ouvida em trechos de transmissões de rádio. Ele também é representado na tela por um ator em cenas que recriam outro dispositivo de enquadramento primário da série, os primeiros julgamentos de Nuremberg em 1945.

O testemunho dos julgamentos é usado para preencher os relatos do programa sobre maquinações políticas, guerras e assassinatos em massa. E a apresentação dos julgamentos é o exemplo mais marcante de um estilo visual que Berlinger emprega ao longo da série: deslizar suavemente para frente e para trás entre recriações elaboradamente encenadas e filmagens coloridas reais, de modo que você precisa prestar atenção para saber se está olhando para o Hermann Göering real ou o ator que interpreta Hermann Göering (o hungaro Gabor Sotonyi). Berlinger busca um efeito dramático contínuo e, se nem sempre funciona como drama, prende bem a atenção.

Karoly Kozma como Hitler: documentário mostra como homens medíocres podem se tornar perigosos
Karoly Kozma como Hitler: documentário mostra como homens medíocres podem se tornar perigosos | Foto: Netflix/ Divulgação

Até as entrevistas são teatrais, filmadas num palco escuro com cortinas vermelho-sangue emoldurando uma escada e o que parece ser uma parede de tijolos ásperos. Não está claro o que o cenário pretende representar, mas pode refletir a tendência demonstrada por Berlinger para uma espécie de sensacionalismo silencioso a serviço da narrativa.

Esse impulso transparece mais claramente em algumas das recriações, como uma cena de prisioneiros judeus sendo executados, ou na forma como o ator que interpreta Hitler silenciosamente, outro húngaro, Karoly Kozma, foi instruído a representar muitas de suas cenas como se ele estivessem no meio da convulsão. Muito do material familiar de um documentário da Segunda Guerra Mundial está faltando ou é mencionado de passagem, com os acontecimentos na frente ocidental recebendo atenção superficial. Berlinger está preocupado com o desenvolvimento da psicologia e da visão de mundo de Hitler, e isso leva a série desde as frustrações de sua juventude na Áustria até sua ascensão na Alemanha dos anos 1930, e daí para a frente oriental, a União Soviética e os campos de concentração. na Alemanha e na Polónia.

O FANTASMA DA EXTREMA ESQUERDA

O foco está em como o pessoal impulsiona o político, e você não pode assistir “Evil on Trial” sem considerar como os sentimentos de Berlinger e de seus colegas em relação a Trump e à extrema direita nos Estados Unidos contemporâneos afetaram o que a minisserie escolheu enfatizar em seu retrato de Hitler e da Alemanha nazista. Mas a argumentação tácita que eles constroem é abrangente. E muito, muito convincente. Vemos Hitler explorando as emoções despertadas pela perda de poder de uma nação; tocar as pessoas que se sentem economicamente exploradas e alienadas de uma cultura liberal e urbana; e unir conservadores moderados e radicais com medo da extrema esquerda. Nós o vemos exigindo lealdade absoluta e colocando subordinados uns contra os outros em batalhas a seu favor. Vemos uma ausência de empatia e uma incapacidade de admitir a derrota. Shirer interrompe: “Comecei a compreender que não importava tanto o que ele dizia, mas como ele dizia. Em tal atmosfera, toda mentira pronunciada é aceita como a própria verdade”.