Na última semana, a poeta mineira Adélia Prado recebeu o prêmio Machado de Assis da ABL (Academia Brasileira de Letras). Mal tinha se recuperado da emoção, veio a notícia de que ganhara também o Prêmio Camões 2024, o mais importante oferecido a autores da língua portuguesa.

Com alegria e o respeito que tenho pela poeta, resgatei uma de suas entrevistas ao programa Roda Viva, da TV Cultura, de 2014, no qual ela, hoje com 88 anos, estava dez anos mais jovem e encantou os jornalistas com uma simplicidade sofisticada.

Aquela mulher inteligente, de pensamento ágil, conquistou a "roda" a cada resposta. Numa delas contou que se descobriu poeta quando era aluna da faculdade de Filosofia e um professor, frei franciscano, notou a sensibilidade de seus textos. Assim mesmo, ela queria a confirmação como quem pede um sinal divino. Essa foi dada por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade que recebeu os manuscritos do livro "Bagagem" (1976), através do escritor Affonso Romano de Sant'Anna, e atestou: Adélia era poeta, consagrada, inclusive, por um dos maiores do País.

Seu primeiro livro foi publicado quando ela tinha 40 anos, uma revelação tardia, mas não menos importante dada a força de seus versos: "Quando nasci um anjo esbelto/ desses que tocam trombeta, anunciou:/ vai carregar bandeira./ Cargo muito pesado pra mulher/ esta espécie ainda envergonhada."

O poema faz interface com outro de Drummond: "Quando nasci, um anjo torto/ Desses que vivem na sombra/ Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida"

Na entrevista ao Roda Viva, a mulher do interior que nasceu para metrópole, lembra seus anos como atriz na cidade de Divinópolis onde, além de fazer versos, dedicou-se à religião católica, fazendo autos dramáticos do nascimento e da Paixão de Cristo. Assim, da religião à literatura, Adélia afirma que há três coisas que são as mais importantes da vida: o sexo, a morte e Deus. Revela-se dessa forma a tríade que permeia muitos de seus poemas.

Corajosa, ela ainda tocou na política nacional dando uma opinião que hoje pode suscitar questionamentos, mas que na época fazia sentido, quando criticou o governo Dilma e os gastos excessivos da Copa de 2014, com aqueles estádios gigantescos sendo erguidos em obras que depois, parcialmente, foram até esquecidas, assim como os trens-leves e os projetos de metrôs . Se na época o debate era necessário, hoje compreende-se que o Brasil não tem maturidade para discutir política como gente grande. Tudo se transforma num cabo-de-força entre esquerda e direita. O que era para ser debate, inclusive com autocrítica, revelou-se como um terreno escorregadio, com o porão da extrema-direita rangendo como alicerce obscuro de um país que põe o fanatismo no lugar da razão, o grotesco no lugar da defesa da democracia.

Mas a Adélia poeta se sobrepõe na conversa na qual a afetividade transborda para as memórias - porque para ela "escrita é memória" - e, até por isso, resgata reminiscências do bairro ferroviário onde nasceu, como uma raiz forte de sua obra.

Para quem ainda não assistiu, a entrevista de Adélia Prado está no YouTube - há ainda outra de 1994 ao mesmo programa.

Nas suas respostas, com olhos abertos para ver o tempo passando, temos uma poeta que se joga inteira no lirismo e naquilo que Guimarães Rosa, mineiro como ela, preconizou: o que a vida quer da gente é coragem.

Salve, Adélia!